05 maio 2007

Cada um sabe a cara que tem


Ontem mesmo, na boa companhia, ao som do violão ao vivo, com caipirinha e pizza, recordava um fato antigo, do tempo em que participava de grupo de jovens cristãos, o que para mim está bem misturado com a escola. Nessas amistosas reuniões, auto-conhecimento era tema que fatalmente ocorria e, instados a responder o que não gostávamos em nós mesmos, talvez até para nos permitirmos uma bronca em Deus, lembro-me de uma amiga que respondeu não gostar de sua cara de brava.

A solidariedade e compaixão comum nessas reuniões fez coro uníssono afirmando e reafirmando a beleza estética da menina e concluindo pelo descabimento absoluto da queixa. Para minha satisfação, nesta reunião não tive de falar sobre mim nem comentar a dor dos colegas, pude manter meu aconchego silencioso e observador. Assim registrei a passagem com detalhes do salão do colégio e seus móveis em madeira, os rostos de alguns de nós e exatamente as palavras de um convicto: “A M. está reclamando de barriga cheia”, em tom escancaradamente ousado e revelando a todos uma ponta de interesse pela moça (quem pensa que nestes grupos de jovens só tem introspecção e recato desconhece a realidade).

Pois é, não entenderam a queixa. Tão prontos em ajudá-la e até com fundamento correto – a moça era mesmo bela – não se atentaram que ela se queixava de parecer brava, não feia. Fico aqui pensando, tão ou mais importante quanto as palavras, as expressões faciais dizem muito do nosso interior. Quão doloroso será expressar um sentimento que não existe interiormente ? Quão cansativo será explicar verbalmente que não está brava e receber de seu interlocutor um olhar de dúvida, pois não é isto que ele está vendo? Será que alterando a forma física de nosso rosto podemos alterar nossa felicidade ? Isso alteraria nossa personalidade ?

Não sabia e ainda não sei responder as questões, mas talvez uma constatação servisse de conforto a essa minha colega: essa dor não é exclusiva de quem parece brava. Quem tem cara de feliz, pode ser visto como bobo. Quem tem cara muito bela, pode ser visto como objeto fútil. Quem, a qualquer hora do dia, tem cara de que acabou de acordar, só mesmo meu cunhado sabe como é...

3 comentários:

Marcelo Salas disse...

Entre tantas má comunicações que vejo hoje em dia, chego a pensar que alguém poderia entender a categórica afirmação do colega ousado como insinuação de que a moça estava barriguda, o que seria um entendimento absurdo, não por que a moça fosse muito magra, que não era, mas porque essa era a intenção diametralmente oposta do rapaz.

Anônimo disse...

Toca-me fazer um post aqui também, abusando das liberdades e franquias deste cadinho das salas insuspeitas do Salas.
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Descobri que tinha uma cara feia na época da ditadura. Confirma-o comentário oblíquo de uma ilustre cinéfila, cujo nome não calha nem lembra. Tempos de chumbo aqueles, lá pelos idos de 73, 74. A ditadura militar nos impunha um manto de terror e ali embaixo, bem quietinhos, nos confortávamos por um código rebarbativo, nos entendíamos e compreendíamos. A bem dizer, sobrevivíamos pela linguagem!
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Lembro-me de ter caído bêbado, como um meteoro negro da fala de Neruda, preso à cadeirinha azul do Teatro Cacilda Becker. Logo me perdi de vista, tragado pelo écran numinoso que explodia a face em preto e branco.

Disse a cinéfila que eu correspondia à sucessão de imagens interiores terríficas do Sétimo Selo, de Bergman. Minha cara era horrenda: “como era feio aquele cara estranho que se sentou à minha frente” - confidenciou a um amigo comum.

O amigo ria às largas, seu riso branco e afônico reverbera ainda nalguma câmara secreta. Sabia-me um lindo feio, um crédulo leitor de Susan Sontag, para quem a doença e a fealdade serão simplesmente metáforas.

Sérgio Jacomino disse...

Ah! a imagem me lembrou os trabalhos impresisonantes de Bruce Bickford, Mr. B. Veja um pequeno exemplo aqui: http://www.brucebickford.com/media/

Sugiro uma visita, caro cinéfilo, ao excelente Zappa - the dub room special! Imperdível!

Abraços

Servvs