14 abril 2007

Ventriloquia

Nem sempre me ponho a escrever, não me faltam motes, falta-me um impulso a mais que não sei o que é... Dessa vez foi a Revista Piauí e seu concurso literário, o desafio era encaixar a frase "Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo." num contexto que lhe dê pé e cabeça... perdi o concurso, mas pouco importa, o bacana é que escrevi isso aí em baixo

PROSA-JAZZ

Não, de novo não, o que foi agora, esse som absurdo, liberta minha alma ou a prende. Aprenda o ritmo, rapaz! Eu me dedicava ao instrumento, mas o descompasso parecia ser minha natureza, tempo, contratempo, um, dois, um dois, um-ôps. Aprenda o ritmo, rapaz! Vá mais longe, apreenda! Eu continuava meu esforço, de boa-fé, concentrava e sentia a musicalidade, a pulsação, a batida, o "groove" e envolvia-me, entretia-me, a instrução era pra deixar sair, sentir, flutuar, relaxar, curtir. Crack! A batuta quebrou-se na minha cabeça e agora eu estava fora. O suingue, o gingado, o balanço seriam meus companheiros apenas de bebedeira? Estaria eu tão fora do tempo assim, condenado a ser consumidor quando queria ser criador? Não vou tolerar esse tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo. Não sou filho de oxum, mas tenho na família pessoa de sensibilidade, mostra que a sonoridade também é uma ilusão, pode vir e não vir de qualquer lugar, e habilidade tão especial usa-se para dar vida e graça ao que é inanimado, transcendência, meu caro, quero transcendência, não essa indecência que me impõem, uma regra, uma norma totalitária, a ser executada em exatos tons e tempos, como poderia uma matemática tão rigorosa produzir a espiritualidade da música, como poderia um metrônomo, uma máquina simples, guardar tamanha ambigüidade, é leal companheiro para uns, é carcereiro e carrasco para outros. Mas a liberdade nunca me pareceu fútil e fácil, então aguardem, se há que absorver completamente a norma para vencê-la assim será, até que, de baquetas em punho, um dia ainda vou sincopar.